Saturday, April 08, 2006
Saturday, April 01, 2006
Friday, March 31, 2006
Memória do 5 de Outubro
A 5 de Outubro de 1910 foi implantada a República em Portugal. As características desta revolta eram marcadamente de movimento popular, pois os civis, ao aperceberam-se da opção republicana da Marinha e de parte do Exército, prontamente se lançaram à rua dando corpo à ideia das vantagens sociais e políticas para que em Portugal acabasse com a Monarquia. Apercebendo-se da irreversibilidade do movimento revolucionário, o próprio rei D.Manuel II, bem como os seus mais próximos colaboradores, logo abandonaram o país. Aliás, para eles não era nova a acentuada tendência republicana da população esclarecida. E a onda popular era tanto mais acentuada se soubermos que o posto mais alto das forças armadas que alteraram efectivamente o poder político entre nós era o de capitão. Advogados, engenheiros, estudantes, escritores, jornalistas, artistas tinham sido aqueles que haviam preparado, pela propaganda vigorosa esta mudança de regime. E nós, portuenses, não nos podemos esquecer que foi Rodrigues de Freitas, jornalista e economista, nascido e a viver no Porto, o primeiro deputado republicano a sentar-se no parlamento português.
É curioso que um dos primeiros historiadores a reconhecer o carácter popular legitimador da revolução republicana de 5 de Outubro, foi precisamente o escritor monárquico Joaquim Leitão. Ele escreveu, ainda no calor dos acontecimentos: «Enquanto os regimentos fiéis e as autoridades constituídas perdiam o contacto com o inimigo, a revolução tinha uma legião de correios e vedetas ao seu serviço. Sem contar com os filiados da Carbonária dentro dos Correios, Telefones, Telégrafos e Caminhos de Ferro, policiavam as ruas, ao serviço da sedição automóveis, trens, bicicletas, que o encurralamento da polícia civil trancada naas esquadras, deixava circular livremente pelas ruas, espiando os movimentos das tropas fiéis para darem aviso aos revolucionários. A população de Lisboa auxiliava voluntariamente a revolução!» Não havia armas para armar todos os civis republicanos que queriam combater pelo seu ideal. E a verdade é que mesmo os generais que, dias antes, haviam jurado perante o rei que defenderiam a Coroa, desse lá por onde desse, aos primeiros tiros, encolheram os ombros e não resistiram. Até eles sabiam que a Monarquia não tinha capacidade para fazer evoluir Portugal nos caminhos da Liberdade, da Fraternidade e da Igualdade, considerando a justiça social como um objectivo político de importância nacional. Não demoraram trinta horas seguidas de combate para que a República ganhasse corpo na Terra Portuguesa, sendo hoje das mais antigas repúblicas da Europa.
Na terra de Rodrigues de Freitas, onde em cada ano se comemora a frustrada revolução republicana de 31 de Janeiro, a implantação da República tem um sabor histórico fundamental. É que, também deveremos lembrar – e comemorar – também foi no Porto que rebentou a primeira revolução contra a Ditadura saída do 28 de maio de 1926, precisamente a 3 de Fevereiro de 1927! E é sobre estas lutas pela Democracia em Portugal que deveremos hoje reflectir.
sobre a possibilidade de uma anamnese comunitária
Diana Pimentel
Universidade da Madeira
Pavana para Isabella de França, editado em 1992, é um livro de contos escrito sob os sinais do tempo, seus andamentos, espectros e cinzas. Trata-se de ficção com passado, não apenas no espaço da ficção que conta, mas sobretudo no círculo da história literária, que revisita e actualiza. Este é um conjunto que compreende uma novela histórica, "Pavana para Isabella de França", e cinco contos ("Lucas depois do credo", "Rua da Carreira, ocaso", "O último olhar pelos Vinháticos", "Póvoa" e "Caffe San Marco"), orquestrado a aparo de aço e de que permanecem sinais perenes, a tinta permanente.
Na anamnese da ficção histórica do Romantismo português que neste livro opera, Viale Moutinho revê – em espelhos – e restitui – em espectros –, fragmentos da história cultural da Madeira (e da Póvoa ou de Trieste) dos séculos XIX e XX (hoje, aqui), inscrevendo na sua ficção a memória literária do mestre, sobretudo ao salvar da morte (da amnésia) os restos da História, as suas personagens. Como na novela histórica de Camilo, sobre a qual se esclarece que "o principal ingrediente (…) é a vida de personagens dominados pela fatalidade das circunstâncias"[1], também nestas histórias comparecem personagens em paixão, em excessivo e continuado sofrimento.
João Augusto, Adão, Lucas, Adélia, António, José e Giorgio parecem ser, não apenas personagens, mas sobretudo rostos devolvidos em ficções de intensa, contida e melódica linguagem. Estas figuras são-nos devolvidas como se das suas histórias de vida restasse um halo, uma aura, especialmente porque da narrativa emanam (sentem-se, vêem-se, ouvem-se) os restos das personagens: os cadernos, uma pavana, a cadeira, a mesa, os livros incendiados, um retrato nunca olhado, cinzas a sair do coração, pedras afogadas, uma antologia de bolso de poesia a um canto.
Desta ficção pode dizer-se, como da de Camilo, que perdurará "não por virtudes próprias do género, mas pela magia da linguagem em que estão escrit[a]s, pelo poder estético que possuem ali onde se fundem os elementos fictivos com elementos históricos, caldeados nas vivas paixões humanas"[2]. Parece ser provável que a magia das narrativas camilianas proceda da fusão que os mecanismos ficcionais operam sobre um determinado real histórico. Nestas histórias de Viale Moutinho parece-me ser possível contemplar uma outra forma de magia, uma sobre-exposição ou aura que circunda visivelmente a sua ficção e que se pode observar observada. Tentarei ver como.
A novela histórica "Pavana para Isabella de França" começa sob o escopo do olhar e das operações intelectuais que o transportam à memória: "Seria, imagino, uma secretária de tábuas grossas onde, em desarrumo, havia cadernos, tiras de papel, um grande tinteiro, penas, lápis e tabaco, montes de cartas e de jornais." O narrador desenha assim (na memória e na ficção) o espaço visível onde, confinado, trabalha João Augusto de Ornelas, projecção memorial e biográfica do jornalista e escritor madeirense[3]. Para além das reais, João Augusto sentia "dores fantasmas" e o sofrimento de que padecia permitia-lhe (assim pensava) uma quase fraternidade com Camilo: "gostaria de o abraçar e chamar-lhe irmão, não necessariamente nas letras, no sofrimento seria bastante". Sob o olhar de Adão Aires, coleccionador do "testemunho do Funchal contemporâneo e dos escritos de João Augusto Ornelas", presentificamos aquele que sentia como o "seu escritor".
De "costas corcovadas", Adão Aires parece ser, não apenas o narrador que nos conduz o olhar pela vida, pelos escritos e pelos escolhos de João Augusto Ornelas, mas sobretudo testemunho vivo da História, pois afirma: "a Madeira histórica acaba comigo", "vem do companheiro de Zarco e acaba em mim". Adão Aires é uma composição ficcional produzida a partir dos restos lendários ou historiográficos da ilha e assume ser resultado, ele próprio, do gesto de ficcionalização da História relativa aos primeiros naturais da Madeira[4].
Por isso, Adão Aires parece afigurar-se como um holograma da ficção histórica aqui presente, sobretudo porque esta personagem anacrónica (e, portanto, inverosímil) parece transportar consigo o halo de um programa ficcional, que exemplifica: a sua presença permite inscrever na narrativa (quase realista) desta novela histórica as margens do real lendário (quase ficcional) da ilha de outros ou de todos os tempos.
Holograma do real lendário, e "tendo diante de si a estampa do retrato de João Augusto Ornelas", Adão Aires especula sobre os modos e os medos ilhéus, observando como "todos trabalhavam na construção de imaginárias paredes, ante as quais a fuga parecia um acto atemorizador". Este processo de revisão e de quase sobre-exposição das figuras de Adão e de João Augusto é possível principalmente porque existem as imaginárias paredes nas quais se projectam as histórias e a memória da Madeira histórica.
Ricardo, "olhos cor de cinza", natural da ilha há muito ausentado, regressa ao Funchal e à rua em que morou João Augusto Ornelas e na qual permanece Adão Aires. Vem "procurar os lugares das fotografias", uma legenda interior para a memória figurada: "não era a infância que buscava, mas um pouco atrás e mais por dentro, quando ainda não falava e não sabia". Este parece ser o processo que conduz a História à ficção, pois Adão antevê que Ricardo o "viera substituir como último personagem". De facto, sobre as figuras deste e de João Augusto advém a de Ricardo, idealizado por Adão Aires "sentado à secretária de João Augusto Ornelas, olhando para o retrato de Camilo, ou Ricardo sentado à sua própria secretária olhando o retrato de João Augusto Ornelas e, um dia, o retrato do último descendente do primeiro homem nascido na Madeira, Adão Aires."
Parece ser semelhante o efeito de percepção visual (uma alucinação?) que conduz o narrador a um movimento de apropriação da História (pela leitura dos seus documentos) que o faz figurar Ricardo, num desenho, à proa do navio Eclypse, acostado ao cais. A Ricardo (regresso improvável ao passado figurado como um eclipse) caberá a tarefa de, para memória futura, "escrever a história, emoldurar aguarelas sombrias". Ao fundo, inaudível, "bem nas profundas da cabeça do corcunda" cessa a pavana[5].
Submerso na memória, Adão Aires pensa ver "intermináveis corredores, abertos nos rochedos, que emparedam as florestas queimadas, o casario em ruínas, os corpos mergulhados nos tanques de formol". São ruínas reveladas à luz da dança pelos abismos da memória as que Adão, como Isabella, vê: "Ao mesmo tempo a claridade crescente revelava as fendas profundas dos barrancos espalhados por toda a ilha." [6]
"Lucas depois do credo" é uma história de medo e de segredo, desterro e morte. Nela se conta (se esconde) e se interroga "em que mistério se tortura um homem como eu [Lucas], mergulhado na memória de uns olhos de que se sumira o nome".
A evocação figurada em imagens ruinosas, sem nome (ou legenda), está, como em "Pavana", também aqui presente. A viúva do médico do Porto morto em Vilarinho regressa ao lugar do fatal acontecimento: "viajara até ali para orar e fotografar o sítio em que o marido tombara". Proposição e imagem constituem o memento que recorda e grava a memória dos acontecimentos. Trata-se, com antes, de inscrever o corpo (ou o seu rasto) no espaço, a identidade no lugar: "Lucas o que deveria escrever na pedra, com as unhas, com um prego, com o seu sangue?"
Em "Rua da Carreira, ocaso", Adélia, doente, faz-se fotografar, numa derradeira tentativa de provar os efeitos (imperceptíveis) dos bons ares da ilha. Figura quase transparente ("pálida"), Adélia não vê a fotografia que tirara para enviar numa "carta a acompanhar o retrato em que estiver mais bonita", "enviada pelo moroso correio, com atraso saberiam do que poderia acontecer de um momento para o outro". Trata-se de tentar diferir a morte (ou torná-la invisível aos olhos de Adélia, que não crê na sua proximidade), sobretudo porque as provas da "explosão de magnésio" não tocam as suas mãos, o seu olhar. Trata-se de um percurso inverso, aquele em que tarda a representação (a fotografia) face ao real, a morte. Terá sido enviada, a carta?
Um outro enquadramento é o de "O último olhar pelos Vinháticos". Não se trata agora de uma fotografia, mas de um caixilho, a delimitação de um olhar que parte: António Jorge Pestana aproxima-se da janela, suspenso perante as "portas abertas, a paisagem dos montes e dos arvoredos mergulhados nas nuvens diante dos olhos". Parece ser possível que a percepção visual (e atmosférica) retenha a memória do lugar e se configure como um seu memento. António procura, ante a morte prometida que lhe aquietará o coração, "levar consigo a derradeira lembrança da terra, fosse quanto lhe cabia no olhar em agonias".
António Jorge Pestana prepara-se, ausentado também de sua mulher. Comparece não Gertrude mas o seu fantasma, "sombra" e "imagem" que procura e não encontra na memória: "nem os olhos nem os lábios, silenciosa, oculta". Assim começa António a partir (e demora), os sentidos e as sensações alterados, a percepção confusa das palavras, do seu volume sonoro e táctil: "não conseguiu apanhar-lhe o sentido das palavras, sobrepôs-se o ruído e a deslocação do ar da porta a abrir-se".
O sopro na morte toca-o ("ia desaparecendo a paisagem"), mas não o toma (ainda): ao tentarem baixar-lhe as pálpebras, "resistiu, embora não visse mais do que cinzas saindo-lhe do coração. Não se sentia cadáver". António vê-se a partir (como Adélia pressentiu mas não viu) e será esta, provavelmente, a possível permanência, a que resta do movimento de dissolução do corpo (cinzas) de que fica uma aura, a memória.
Em "Póvoa" encontramos José da Mata, pescador primeiro e "mestre de terra" depois, investido na função durante as festas de Nossa Senhora do Mar Alto por seu tio Jerónimo Tato. José perdera um braço no mar e desejava que de si e da sua história fizessem notícia escrita. Neste conto documenta-se que um neto seu, Júlio da Mata, descobrira, na Gazeta da Praia, o relato em letra impressa do caso do decepado braço.
No decurso das gerações a vila da Mata havia recuado perante o mar subido, os barcos transformados em "madeiros empilhados". Júlio regressa à vila submersa em dia raro (um em cada ano) de maré baixa e conta (a voz em primeira pessoa, porque testemunha de tão particular acontecimento) que os da Mata embarcaram pedras a bordo e, "um a um", "abraçados às pedras", se "lançaram no lugar da antiga vila" e se deixaram afogar.
Não agora cinzas mas pedras, a antiga vila em ruínas contém, por fim, submersa e habitada, quem lhe pertence, a sua comunidade. Parece-me ser possível observar neste movimento de imersão uma reciprocidade e partilha indissolúveis entre o lugar, a vila, e os seus habitantes.
"Caffe San Marco" é uma anamnese de outros lugares e das suas palavras, porque por este café em Trieste passam (e deixam vozes) Saba, Voghera, Svevo, Canetti, Joyce, Rilke, Dante e outras sombras exiladas.
Este é um conto triestino, cujas personagens (tão reais quanto ficcionais) são autoras de si mesmas: Ernesto é o "rosto devolvido" de Umberto Saba[7], Giorgio Voghera transporta a sombra certa da morte[8], reflectida aqui nos "grandes espelhos" "possivelmente extintos" do Caffe San Marco. Svevo[9] é uma personagem literária de que permanecem restos das histórias a que (e pelas quais) nos conduz, até ficarem limpas, vazias, comuns, as mesas do Caffe San Marco.
Esta é uma peregrinação (não, como em "Póvoa", a uma vila submersa, mas agora a uma comunidade de escrita) a uma mesa de café, num percurso pela cidade em que Rilke ouviu "o cantar dos anjos". Esta parece ser uma espécie de anábase pela qual o narrador, que tira "fotografias junto da cabeça de Joyce", sobe à rocha filmada "onde a lenda coloca Dante a meditar nos seus versos, durante o exílio".
Não se trata, como nas histórias anteriores, apenas de imagens estáticas (fotografias), mas do movimento (aéreo, filmado) pelo qual estas personagens ascendem aos "grandes espelhos" do tempo e se tornam anjos (ou mensageiros) dos ínfimos átomos de memória que consigo a História transporta.
Portanto, estas são, possivelmente, histórias que nos devolvem (no "grande espelho" da ficção) os espectros de figuras que sobre o nosso tempo deixam uma sombra, num movimento de reciprocidade que nos torna, a nós leitores, membros desta comunidade (histórica, literária ou real): olhamos, como João Augusto, Adão, Lucas, Adélia, António, José e Giorgio olharam, os cadernos, uma pavana, a cadeira, a mesa, os livros queimados, um retrato nunca visto, cinzas a sair do coração, pedras imersas, uma antologia de bolso de poesia a um canto.
Neste livro encontro, não apenas despojos, mas sobre todas uma "promessa de partilha, a partilha de um universo em que haja uma comunidade entre o que olha e o que é olhado"[10]. E, porque um eclipse é apenas resultado da aparente desaparição de um astro pela interposição de outro entre si e um observador, por fim, entre as sombras, revela-se uma aura, a que estes seres e as suas coisas em si contêm, como um "círculo em que a coisa ou o ser se encontra estreitamente encerrado como num estojo"[11].
Neste estojo coube, e com ela estas histórias foram escritas, uma caneta de tinta permanente.
Funchal, 2006.
[1] Castelo Branco Chaves, O romance histórico no Romantismo Português, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, p. 51 (sublinhado meu).
[2] Castelo Branco Chaves, O romance histórico no Romantismo Português, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1979, p. 55.
[3] Autor, por exemplo, de A mão de sangue (1874), com "Impressões de leitura" de Camilo Castelo Branco, e de O Enjeitado (1886), com uma carta-prefácio de Manuel Pinheiro Chagas, e redactor principal de O Direito (a partir de 2 de Novembro de 1859).
[4] Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes afirmam, na entrada relativa a Gonçalo Aires Ferreira do Elucidário Madeirense (edição em Cd-Rom, CHEA, Funchal, s.d.), que "(...) Gonçalo Aires Ferreira foi o mais distinto companheiro do primeiro descobridor. (...) Alguns linhagistas têm posto em relevo a circunstância de ser Gonçalo Aires o mais dedicado companheiro e o mais devotado amigo de João Gonçalves Zarco nos trabalhos da expedição e descoberta e também na primitiva colonização da capitania do Funchal. (…) Gonçalo Aires era filho de Gomes Ferreira e de Isabel Pereira de Lacerda. Veio casado para esta ilha no princípio da colonização e do seu consórcio houve dois filhos gémeos, que foram os primeiros indivíduos que nasceram na Madeira, os quais tiveram por isso os nomes de Adão e Eva." (Sublinhado meu).
[5] A peça para piano Pavane pour une infante defunte (1899) foi tocada pela primeira vez em 1902 pelo intérprete catalão Ricardo Viñes, aluno e amigo de Ravel. Sobre Pavana, afirmou Ravel: "Ne pas attacher à ce titre plus d'importance qu'il n'en a. Éviter de dramatiser. Ce n'est pas la déploration funèbre d'une infante qui vient de mourir mais bien l'évocation d'une pavane qu'aurait pu danser telle petite princesse, jadis, à la cour d'Espagne." (em Marcel Marnat, Maurice Ravel. Paris, Fayard, 1986, p. 96-97).
[6] Isabella de França, Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal (1853-1854), tradução de Cabral do Nascimento, introdução de Cabral do Nascimento e Santos Simões, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo [1970]; Sublinhado meu.
[7] Ernesto é um romance quase autobiográfico deste autor, escrito em 1953 e publicado postumamente, em 1975.
[8] Nostra Signora Morte, de 1983.
[9] Pseudónimo de Aron Hector Schmitz, escritor triestino, também conhecido por Ettore Schmitz.
[10] Maria João Cantinho, Ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin, Coimbra, Angelus Novus, 2002, p. 119.
[11] Walter Benjamin, Sur le Haschich, tradução de Maria João Cantinho, apud Ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin, Coimbra, Angelus Novus, 2002, p. 119.
- prefácio para a edição italiana do livro «O medo não podia ter tudo»
de Francisco Duarte Mangas e Augusto Baptista
José Viale Moutinho
Poesia:
perdoa-me por te ter ajudado a compreender
que não és apenas feita de palavras.
Roque Dalton, El Salvador
Conheço muito bem os dois escritores destas quatro histórias. São meus amigos e tão amigos entre si que não me admiraria se no livrinho não tivesse cada um deles assumido as próprias prosas. Porém, a diversidade das experiências decerto determinou o critério de menção mais precisa no respeitante a autorias. Em Francisco Duarte Mangas emerge o adolescente que foi numa aldeia rural da nortenha província portuguesa do Minho, no antes e depois da Revolução dos Cravos, e em Augusto Baptista as circunstâncias de um ex-forçado combatente na Guerra Colonial, primeiro como instruendo, ainda no refeitório do majestoso e militarizado convento de Mafra, onde se cozinha o oficialato miliciano, e, depois, já algures no mato angolano, mas depois de em Portugal ter sido derrubado o fascismo pela aliança do Movimento das Forças Armadas e da emergente vontade popular. Ambos jornalistas, o Francisco Duarte Mangas redactor e o Augusto Baptista repórter-fotográfico, aquele, que iniciou o seu percurso literário com livros de poemas, não tardou a tornar-se num dos raros bons exemplos de romancistas finisseculares, enquanto Augusto Baptista, para além de um invulgar observador da realidade mais ingente, através das suas lentes, tem preocupações tão diversas que vão do cartoon ao ensaio sobre teatro popular, passando por um sem número de pequenas histórias de mais ou menos nonsense. Assim, este livro é, antes do mais, uma saudável homenagem à Revolução que, a 25 de Abril de 1974, derrubou a ditadura salazarista-caetanista em Portugal, pondo cobro a 48 anos de dolorosa opressão. E essa homenagem salda-se na afirmativa que é titulo da primeira história e expressão oportuna no comentário do narrador da terceira: o medo não podia ter tudo.
Diria eu que se trata aqui de um livro programático, ilustrativo de uma Revolução capaz de reinventar a Democracia no espaço português, conduzindo, naturalmente, ao fim das instituições fascistas, da Guerra Colonial, e a uma nova Constituição. Esta, recorde-se, ou saiba-se, nos seus dois artigos iniciais, desde a aprovação, em 1976, e até à revisão de 1987, declarava Portugal como «uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes»[1], já no artigo seguinte, decerto o mais polémico, originalmente estava escrito e aprovado originalmente: «A República Portuguesa é um Estado democrático , baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais no pluralismo de expressão e organização política democráticas, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras». No entanto, a redacção deste artigo não durou mais de seis anos[2] Sucessivas revisões por assembleias da República, de maioria liberal e neo-liberal, tornaram-na praticamente light.
Um par de vozes insubmissas as dos autores deste livro, vozes carregadas de futuro, vozes indagadoras, com registos poéticos muito próprios, mas com referências que fui encarregado de descodificar. E, antes do mais, o enquadramento geral. Seja, responder ao mais distraído dos leitores sobre o que foi aquilo que em Portugal se chama apenas 25 de Abril.
Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas toma o poder em Portugal, precipitando a queda do regime saído de um golpe também militar registado a 28 de Maio de 1926, na sequência do qual seria alcandorado a presidir ao Conselho de Ministros, com prerrogativas ditatoriais, um jovem professor da Universidade de Coimbra, António de Oliveira Salazar, que montou todo o aparelho daquilo que chamou Estado Novo. Bastará termos visto uma fotografia sua no seu gabinete de trabalho, e fixado o olhar no único retrato que ele, nos início dos anos 30, tinha na sua secretária, em lugar de destaque. Nem mais nem menos do que Benito Mussolini, o que revelava suficientemente a sua opção de governo. Aliás, isto é corroborado com a criação de instituições como a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa, de recorte nazi-fascista. Para além das diversas forças policiais, a urbana Policia de Segurança Pública, a rural Guarda Nacional Republicana, a de investigação criminal, a Polícia Judiciária, logo surgiu a Policia de Vigilância e Defesa do Estado, de cariz político, para a defesa da Ditadura, e ainda a Policia Internacional, reservada ao controlo de fronteiras. Pouco antes do final da II Guerra Mundial, estas duas policias fundiram-se numa só corporação, a tenebrosa PIDE (Policia Internacional e para a Defesa do Estado) que, ao iniciar-se o consulado de Marcelo Caetano, em 1968, mudou a designação para Direcção Geral de Segurança. Igualmente mudou de nome a Comissão de Censura, destinada à Comunicação Social e aos Espectáculos, aparecendo então a Comissão de Exame Prévio…
Repressão a todos os níveis, partido único, a União Nacional de Salazar transformada, em 1968, em Acção Nacional Popular com Marcelo Caetano, se não contarmos com a grande força de oposição clandestina, o Partido Comunista Português. Em 1961, no Norte de Angola, as forças de libertação colonial iniciam os seus ataques, somando-se rapidamente situações de guerra na Guiné e em Moçambique. A juventude portuguesa é enviada para as colónias e a guerra de guerrilha leva o pânico às famílias portuguesas. A emigração e o exílio acentuam-se, desertifica-se o país num atraso marcado pela palavra de ordem salazarista: «orgulhosamente sós».
É nos quadros das Forças Armadas que se força um movimento clandestino, que ganha uma invulgar força inteligente e antifascista, com o objectivo inicial de acabar com a guerra, favorecendo a autodeterminação dos povos colonizados – a Guiné já declarar unilateralmente a independência – e o regresso do País Português à Democracia. E a 25 de Abril, quando o Movimento das Forças Armadas tem o seu programa de acção pronto e amadurecido o plano de ataque, o regime é deposto. As populações, convidadas a aguardar em casa o desfecho da alteração do regime, não obedece e invade as ruas, colocando-se ao lados dos militares progressistas. A Revolução ganha uma nova dimensão, a popular e começa então uma vaga de fundo que culmina com a Constituição de 1976, que apontava para o socialismo, para uma sociedade sem classes, como se disse. Bem, e nos parâmetros democráticos, a realidade portuguesa foi mudando, enveredando por caminhos dolorosos, perdendo-se a confiança e as possibilidades iniciais na tal sociedade sem classes, que tivera como mais altos picos os governos provisórios do general Vasco Gonçalves e da Eng.ª Maria de Lurdes Pintasilgo. A esses tempos foi dada a designação de PREC (Processo Revolucionário em Curso).
Com a contra-revolução do 25 de Novembro de 1975, Portugal não cessou de deslizar para o pântano conservador, enquanto adquiria os seus foros de legalidade democrática de algum modo autofágica. Mesmo o Partido Socialista, com os seus compromissos de barragem à construção de uma sociedade verdadeiramente socialista em Portugal, acabou por manifestar-se maioritariamente social-democrata, deixando sem margem de manobra nesta área o PPD, que se rebaptizaria posteriormente como Partido Social Democrata, mas não ultrapassando a posição de centro-direita e, mesmo, de direita. Com os sinais da Revolução de Abril ficou o Partido Comunista Português, liderado por Álvaro Cunhal.
Bem, mas este prefácio não deve ultrapassar a categoria de uma bandeira agitada. Bandeira vermelha, naturalmente. E servir, como disse, de enquadramento a estas quatro belíssimas histórias. Ora, assim, guarde o leitor na sua memória algumas notas mais directamente ligadas às fábulas. No texto que dá o título ao livro, Francisco Duarte Mangas fala da visita de um ministro salazarista a uma aldeia rural. A inaugurar a Casa do Povo, uma instituição de recorte fascista. Ele dá-nos amostras de guerra colonial e de emigração clandestina, de dois homens, um ficcionado, o opositor desencantado, que afoga em vinho a sua revolta, e outro real, membro de uma força revolucionária armada. Há uma chamada ao próprio livro de leitura do Ensino Primário, onde figurava o retrato do último presidente da República antes do 25 de Abril, figura tão pouco considerada que todos o designavam por «cabeça de abóbora»! Mangas fala-nos do antes e do depois do histórias dá-nos como a notícia chegou à sua aldeia, aldeia que, pela menção da existência do pelourinho, vemos que já teve uma outra importância no passado remoto. O rapazinho é aluno da telescola e sente nas palavras da mãe que algo mudou radicalmente à sua volta, fazendo baixar para segundo plano o facto de ter pescado a sua primeira truta, ainda por cima do tamanho da palma da sua mão.
Já Augusto Baptista nos fala dos seus tempos de cadete em Mafra, onde o meteram para dele o regime fazer um oficial miliciano para a Guerra Colonial. O regime dizia que era uma mera acção de policiamento no Ultramar! E dá noticia da solidariedade humana através de um levantamento de rancho, em que alguns falham mas, num instante, todos regressam ao bom caminho da solidariedade! E a segunda das histórias deste escritor aponta para o pós-25 de Abril com a tropa portuguesa ainda em Angola, mas já em funções de paz, acudindo aos conflitos laborais, ao serviço ideal dos trabalhadores. Baptista tem o sentido do humor e do dramático, ele sabe escarvar nas feridas dos homens, nas chagas dos tempos.
Um livro dolorosamente apaixonante este pequeno volume que vos deixo. Mas para que não mudem de página com um travo amargo, deixem-me contar-lhes, mesmo em voz baixa, um episódio do tal «cabeça de abóbora». Pois um dia, levado a uma varanda sobre magnífica paisagem, teve esta reacção: «Perante uma vista assim, só posso dizer um adjectivo: gostei.» Por isso a Censura tinha uma determinação singularíssima, a de não se poder transcrever declarações do Senhor Presidente em discurso directo…
Porto, 24 de Março de 2006.
[1] Desde 1997, a redacção deste Artº 1º é: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.»
[2] Na revisão de 1989, este Artº 2º passa a ter uma redacção mais suave, despojada da linha marxista inicial, de que transcrevemos apenas a parte alterada: «… democráticas e no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, que tem por objectivo a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa». No entanto, este artigo volta a ser retocado na revisão de 1997, de que damos notícia: «… popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas e no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, que tem por objectivo assegurar a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.» O socialismo foi definitivamente apagado…
Sobre Natureza morta iluminada:
Imaginação, habilidade expositiva, caracterização rápida de ambientes e personagens ? eis as suas virtudes mais salientes. ?
Histórias (histórias?) terríveis, em que a própria prosa é clandestina luta. Ler este livro é uma experiência invulgar, porque o dramático não é artificialmente criado e entregue ao nível do significado, mas está desde logo no significante eruptivo e invasor.
Numa escrita extremamente ágil e cheia de novidades surpreendentes para o leitor, mas sempre eficientes do ponto de vista de expressão, JVM transpõe o real para um quase surreal de amargura e grosseria, para uma nova pauta onde a realidade resulta extremada mas não caricaturada, e muito menos negada. Nisso, mas não só nisso, aqui tem o leitor verdadeira prosa e verdadeira prosa portuguesa.
Monday, March 20, 2006
de José Viale Moutinho
Então, foi assim:
Dentro de dois dias chegaremos a Vigo, aí começará a minha nova vida. Meu tio Amâncio bem me dizia que guardado está o bocado para quem o há-de comer. Morreu sem me ter mostrado o bocado que eu havia de comer, mas ficou-me a lição. Mas quando o cambista António Romero me admitiu ao seu serviço, fê-lo porque queria alguém com estudos que o ajudasse no armazém. «Olhe que isto, portando-se você bem, tudo isto poderá um dia ser seu.» Um dia. Ora um dia é não saber e eu gosto de saber. E acho que até soube, soube aproveitar, que se por um lado eu vislumbrava a sorte, por outro ela aparecera-me assim. Começo a escrever este meu diário no barco, o Guadalupe, que, depois de Vigo, segue para Buenos Aires!
O pobre diabo, um galego, que empurrava o carro de mão, tinha uma expressão comprometida. Não era só pela chiadeira das rodas, mas pelo fedor que exalava a barrica transportada. Faltava-lhe pouco para chegar à capela de Nossa Senhora do Ó, no Largo do Terreiro, ao fundo da Rua da Fonte Taurina. A mulher que lhe confiara a barrica, recomendara-lhe bico calado e entregara-lhe umas moedas. Era um serviço bem pago, muito bem pago, mas fedorento. Toda a gente implicava à sua passagem. Como se tinham lembrado dele, nem fazia ideia nem lhe interessava. A mulher era já velha e procurara-o na Adega do Porco, às Doze Casas, na tarde do dia anterior. Nunca a vira, nem tencionava voltar a vê-la. Não fizera perguntas. Mas a barrica empestava, como se o conteúdo fosse tripas podres. Ou carne podre. Em Agosto, o Porto aquecia tanto, que o que quer que ali rodasse já não estava em bom estado. Só pelo dinheiro não se arrependia do frete. E lá continuava a descer a Rua das Flores, indo colar-se à parede de S. Francisco, para a última etapa. Suava, merecia beber, aliás beber acompanhado. No botequim da Ribeira. A acentuada descida obrigava-o a suster o andamento, para que a barrica não saltasse do carro. Por fim, chegou à capela.
- Oito horas! – Respondeu um homem de mau modo a alguém que o vira tirar o relógio do bolso e o interrogara.
O fedor entrou-lhe imediatamente pelas narinas, a ele e ao que perguntara as horas. À porta de um dos tascos estava um tipo qualquer com um copo na mão, meio aparvalhado.
- Que cheirete, sr. Bento da Costa! Assim, de repente…
O homem do relógio olhou para a barrica que estava no carro de mão, que o galego encostara à parede da igreja. Quis saber:
- É para atirar ao Douro?
Respondeu-lhe o recém-chegado:
- É para ficar aqui.
- Quem te mandou?
- Uma mulher do Largo da Aguardente. O frete está feito e recebido. Até aqui o carrinho foi pago. Agora vou-me embora.
- E vai ficar isso aí, ainda por cima a cheirar mal?
- Quero lá saber. Já fiz o combinado.
O galego voltou as costas, já decidido a ir beber um copo na Porta dos Carros, e iniciou a subida da rua que acabara de descer. Quem não estivesse para aturar o cheiro, que rodasse a barrica até à beira do rio e a empurrasse. A velha dissera que era para encostar o carro à capela da Nossa Senhora do Ó, e melhor encostado não poderia ter ficado.
O cambista mostrou-me os cantos da casa. Quando lhe disse que era sobrinho de Luís Filgueira, logo me disse que eram amigos desde os bancos da escola do professor Minas. Não tinha mais empregados e parecia que eu lhe entregara uma mão-cheia de cartas de recomendação, e não lhe entregara nenhuma. Deu-me logo uma importante quantia para que fosse a Santo António mandar fazer um fato completo, com colete, camisas, sapatos, tudo, porque o seu gerente tinha de ter uma boa aparência. É este fato que trago posto.
O guarda municipal não estava para maçadas. A barrica, de facto, fedia, mas ele não sabia se aquilo era exactamente coisa para o seu serviço. Não havia nenhum regulamento que se referisse a tipos de mau cheiro, que não fossem dejectos humanos, que a merda não cheirava assim. Isso sabia ele. Alguém enfiara gatos ou cães mortos na barrica, ou que outra coisa poderia ter sido? Havia por ali mais de uma vintena de curiosos. O sr. Bento da Costa pediu ao homem que estava à porta do tasco a beber que fosse buscar um martelo, uma alavanca, qualquer coisa para abrir a barrica. Ele não queria ir, mas alguém lhe meteu na mão um pedaço de ferro e empurrou-o para junto do carro de mão.
O doutor Sebastião Dinis, Juiz de Fora do Crime, bebia refresco de limão e abanava-se com uma folha de papel grosso, mas de que poderia valer estas armas ante uma vaga de calor na cidade do Porto? O escrivão Matias Saraiva cabeceava de sono. O calor e as noites em claro atacavam-no impiedosamente.
- Está a ouvir bem o que lhe digo?
Quando o juiz fazia uma pergunta, o escrivão punha-se de pé, abotoava o casaco e depois acenava que sim com a cabeça.
- Ora, então, leia, faça o favor, ó Saraiva.
O escrivão pigarreou e leu:
- Ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1824, aos 14 de Agosto, nesta Cidade do Porto, e sítio do Largo do Terreiro, aonde veio o Doutor Juiz de Fora do Crime, comigo Escrivão deste juízo, Matias Saraiva; ainda sendo presentes Bento da Costa, comerciante da Praça da Ribeira, e António Estorvo, morador na travessa de S. Nicolau, que assim disseram chamar-se, mandadas comparecer na presença dele, Ministro, por constar que foram as primeiras pessoas que encontraram neste sítio uma barrica, em a qual se achou o cadáver de um homem metido em sal…
O Juiz de Fora do Crime fez sinal para que a leitura fosse interrompida, mas o Escrivão acenou a dar a entender que não havia mais nada escrito, e acendeu um charuto. A primeira baforada de tabaco pareceu iluminá-lo. Debruçou-se sobre as notas e pensou que o tabaco parecia cortar o cheiro nauseabundo que se lhe entranhara nos pêlos do nariz, quando quisera ver o cadáver. E continuou a ditar, mas a voz saía-lhe mal, umas vezes em falsete, tossia. Não percebia a extraordinária calma do escrivão. Finalmente, pediu-lhe para ler o que escrevera.
- … e logo ele, Ministro, os ajuramentou, este os é deles, a não ser que Vossa Excelência deseje que escreva as ajuramentou, a elas, às testemunhas. – Mateus Saraiva notou um leve encolher de ombros do magistrado. Ficaria assim mesmo. Prosseguiu. - … a ambas aos Santos Evangelhos, encarregando-lhes declarassem o modo e forma por que encontraram a dita barrica, e conheceram o que continha; se sabem quem ali a conduziu e a direcção que trazia; e recebido por elas o dito juramento declararam…
Quando o sr. António Romero se voltou, viu-me a corda nas mãos, e o que o perdeu definitivamente foi não ter percebido logo o que eu ia fazer com ela. E eu ia fazer a minha fortuna, evidentemente, e esta viagem.
Andou mais de uma semana a dizer que ia montar uma agência da sua casa no Brasil, que viajaria em breve, que eu ficaria a tomar conta das coisas no Porto, que mais isto, que mais aquilo. Escreveu cartas para toda aparte até prometeu um papagaio à vizinha da frente, a quem arrastava a asa. Só tive de estudar as partidas dos barcos, para que tudo coincidisse.
Bento da Costa disse que estava a aguardar que um recoveiro chegasse de um recado a que o mandara ao outro lado do rio, quando ouviu o chiar de um carro, que ele não viu imediatamente, por estar encoberto pela esquina. Porém, não tardou a que surgisse um carrejão com um carro de mão, onde transportava uma barrica. Mal chegou junto da capela, encostou o carro, cuspiu nas mãos e, como logo se espalhasse um fedor muito forte, ele mesmo o interrogara sobre o destino que ia dar àquilo, tendo sabido que fora pago para deixar ali o carro e a barrica, retirando-se. Não se lembrava o comerciante dos traços do rosto do homem, mas galego era de certeza, tanto mais que trajava com as roupas rudes que costumavam usar os filhos de Pontevedra. Nunca o vira nem lhe parecia que o poderia reconhecer.
O outro arrolado como testemunha, António Estorvo, declarou que o sr. Castro lhe pedira que arranjasse um martelo ou qualquer outra coisa que servisse para abrir a barrica. Alguém lhe meteu um ferro na mão, pois não sabia de nenhuma ferramenta, e ele mesmo fizera saltar a tampa da barrica. O cheiro tornara-se de tal modo intenso que quase desmaiou, uma mulher tivera de pôr-lhe água nas fontes.
Do guarda municipal não havia notícia. Toda a gente o tinha visto, mas ele desaparecera naquela confusão. Foram umas mulheres, por ordem do sr. Bento da Costa, que haviam ido chamar as autoridades.
- Ora leia lá isso, ó Saraiva…
- … as testemunhas estavam persuadidas de que na barrica havia carne em mau estado, presuntos ou chouriços. Porém, destapada a barrica, pois fizeram saltar uma das extremidades, se achou por cima coberto com roupa, e tirando-a se viram os pés de um homem com botas calçadas, e tirando-o para fora, acharam um cadáver metido um sal, o qual estava vestido de pantalonas, colete e casaca, achando-se-lhe umas pequenas chaves…
- Para que raio quereria o homem essas chaves depois de morto?
- Sabe-se lá, senhor dr. Juiz! Para abrir as portas do céu, seria?
-Não blasfeme, Saraiva.
- …e entre o sal uma faca de ponta. Ignora-se de quem seja o cadáver, por não estar já em estado de se poder conhecer; e da mesma forma se ignora o destino do carrejão, por não se saber donde veio, e disto, por nada mais haver a acrescentar, eu, escrivão, dou fé.
- Eu confio em si, Saraiva, você é um homem experimentado nestas coisas, por isso poupe-me a leitura mais escabrosa, mas releia isso para si. Como se estivesse a ler para eu corrigir. Eu sei das suas qualidades, Saraiva. Com este calor, não aguentaria o resto. – E o Juiz de Fora do Crime bebeu ruidosamente meio copo de limonada e levou ao nariz o, bainha lenço perfumado,
Mateus Saraiva prosseguiu a leitura em silêncio, mas movendo os lábios para que o magistrado se apercebesse da sua diligência:
- E sendo presente o cadáver, lançado sobre um pouco de sal, eu o escrivão não o pude reconhecer por se achar inteiramente desfigurado; e junto dele se acharam uma navalha de ponta, com cabo de osso, bainha de couro, e duas chaves presas a uma argola, que parecem de gaveta, e no cadáver se achou ao pescoço umas contas com uma cruz de latão, e estando o mesmo cadáver vestido com casaca, colete, camisa, pantalonas e botins. – O escrivão franziu as sobrancelhas, estava a repetir as coisas, depois comporia, antes de levar ao juiz para assinar. O truque era ao dar aquilo por concluído, fazer tombar o tinteiro, de modo a ter de reescrever tudo noutro ambiente, com menos tensão. Beberia um chá de tília. E chegara à tal parte que impressionara o juiz ao ditá-la. - … parecendo a casaca de cor preta, o colete de veludilho preto e as calças de ganga amarela, o que bem se não pode afirmar, por se achar a mesma roupa inteiramente danificada pelo sal; e sendo examinados os bolsos da dita roupa, senão achou coisa alguma nos do colete e calças; e no bolso da casaca se lhe achou um lenço e uma caixa de papelão redonda, para tabaco, do tamanho de uma hóstia ordinária; e examinando-se os farrapos que cobriam o cadáver na barrica, nada mais de importante se encontrou. – Reparando que o Juiz de Fora do Crime parecia adormecido, pelo menos tinha as pálpebras baixas, o escrivão saltou a sua leitura silenciosa para o relatório apenso. - … comparecendo ao acto os cirurgiões aprovados e do Partido da Relação, Alberto de Serpa e Gramaxo Antunes, ele, Ministro, devidamente os ajuramentou, encarregando-lhes vissem e examinassem o cadáver, etc. – Matias Saraiva evitou ler, pois mais tarde teria de o fazer ao reescrever aquele assento. O cadáver tinha a cabeça quase separada do corpo, fracturada, que o pobre havia sido acutilado até à morte.
- Merda, Saraiva! Outra vez! Já anteontem aconteceu isto!
O tinteiro estava caído e a tinta empapava o papel do assento. Mateus Saraiva apresentava uma expressão compungida.
Pelas suas contas, o gerente do senhor Romero já estaria na Argentina quando conseguissem identificar o patrão, que deixara salgado na barrica. Pagara à velha bruxa do Largo da Aguardente para que se livrasse da barrica. Não resistira a um bom caso de jornais. E quis que o descobrissem a certo prazo. Mas estaria a salvo em Buenos Aires ou na Bolívia. Encarregara um procurador de lhe mandar todos os jornais que falassem na viagem do patrão, no achamento da barrica, das diligências policiais, ficando na expectativa de que o descobrissem, embora demasiado tarde, obviamente.
Em Vigo, nos Peiraos, o gerente do senhor Romero foi seguido por um tripulante do Guadalupe, que se apercebera que ele levava uma grande quantidade de moedas de ouro no alforge de que nunca se separava. Andava derreado o português, derreado com aquele peso. Fora fácil, ao anoitecer, meter-lhe uma sevilhana nas costelas e arrancar-lhe o alforge. Empurrara-o, ainda vivo, para as águas, que se tingiram de sangue, mas acabou por morrer afogado no lixo que batia nas pedras.
E assim a Divina Providência se encarregou de fazer pagar com língua de palmo ao assassino do senhor Romero, a quem o tio Amâncio observara: Guardado está o bocado para quem o há-de comer. No entanto, o tripulante do Guadalupe em vez de regressar ao navio, seguiu a cavalo para Madrid, onde depressa gastou aquela fortuna que roubara.
Gostaram do desfecho? É um pouco moralista, mas eu ainda tenho uma ligação atávica a determinados valores, desculpem. O marinheiro é que se me escapou.
POR UM BOSQUE TÃO SOMBRIO
de José Viale Moutinho
Por um bosque tão sombrio
António Ferreira
1
o homem, olhando por cima do ombro,
assobiou, mas ninguém lhe respondeu,
quem seria, quem, só o rosto revelava
a surpresa muito própria de quem sabe
o que ali poderia, por fim, acontecer,
mas não escreveu na parede da casa,
só ergueu a mão direita ao coração
e afagou a pele, o mamilo esquerdo,
mas não era dali, retraía-se,
perdia o tempo velho das maçãs,
perseguiam-no, sim: odiava-os,
procurava a porta da saída de cena,
entendia que só lhe restava
a fuga, a fuga insuportável do deserto,
2
nada que eu possa dizer: sabor
dos sabores, pelos campos tenho
o outro lado daquela colina,
a mesma pedra branca acolhedora,
mas nem por palavras, talvez um grito
que pareça sem sentido, inerte,
exangue, desses gritos que morrem
quando não têm para onde ir,
oh, nada que eu possa saber, a voz,
por estranho que pareça, sempre cede
como as sombras pela manhã,
basta o sol assomar que corta as veias,
3
não, nem por gestos leves, apenas
com os movimentos de um gato muito
serafim, um gato que não reconhece
a mão que o afaga, um gato que arranha,
ninguém, sequer os restos mortais de um anjo
debaixo do tapete de borracha, ninguém
às portas do que resta da noite, apenas
o gato olhando fixamente as nuvens,
4
sabes, uma mulher andava pelas ruas
da amargura, rosto esquálido, verde,
tropeçava nas mãos quando as estendia
às portas fechadas, às paredes de pedra
e azulejos, afagava todos os animais
que, perdidos, se acoitavam na casa
abandonada ao fundo da rua,
uma mulher que poderia estar morta e
morta, perseguida, afundada na lama
do caminho que levava à fonte dos engaranhos,
nua, quando calcava os arbustos secos
que juncavam o caminho de cabras,
perdia-se dos olhares dos outros,
manejava os seus silêncios, fumava,
uma mulher que ia ao bosque e regressava
a casa, e sempre dizia as mesmas coisas,
as mesmas palavras fragmentadas, cruas,
alguém lhe roubara o nome do porta-moedas,
possivelmente haviam-lhe prometido
o falso manto de nossa senhora das dores,
5
e que posso saber olhando a rua,
as palavras misturam-se nas bocas
e é como se todos guardassem entre
as pedras, no cimento, na terra,
entre as ervas daninhas, nas pontas
dos cigarros esmagados, um discurso
sem préstimo: nada posso saber do país
excepto o que vem nos jornais errados,
nenhuma palavra é consentida
na paisagem, do restaurante popular
onde guardo o que me não cabe
nos bolsos do velho casaco de sombra,
mesmo que deixe escapar um grito,
observo a tesoura abandonada na mesa
e do escritório do receio, que seios
onde apoiar os lábios esquecidos,
que estranhos meios de perder o riso,
que posso saber olhando a rua
onde moro, os meus vizinhos, as luzes
com que se despem silenciosamente,
que devo pensar destas árvores cortadas,
queimadas, ninguém me pode responder,
muito menos as sombras da tua boca,
6
construir parques de estacionamento
subterrâneos é uma prática suicida
como outra qualquer, ah, a pátria,
convenhamos, poderia ser mais brilhante,
como um sol ou o seu espelho,
o velho guardador de automóveis,
provador de todas as aguardentes,
não se compara a estes soluçantes
jovens que coleccionam moedas
para o pó branco ou o chuto de cada dia,
11
estar assim com os olhos nos bolsos
e os dedos metidos nos ouvidos,
mastigando a língua, as palavras,
sonhando com o rosto colado na vidraça,
bebendo o café amargo, tecendo medos,
incertezas, tempo descontado,
estar assim no fio da lâmina é saber
que o teu sorriso é para mim,
que quando os teus cabelos me cobrem
é porque os teus lábios estão próximos
do último esconderijo, entre as pedras,
12
de repente, ao atravessar uma rua,
abro as mãos e vejo toda esta ausência
na sua túnica de espera e silêncios,
telefonemas e lábios que apenas afloram
o segredo da boca, atravessar uma rua
tem destes perigos, pelo que afundo, eco
de mim mesmo, as mãos nos bolsos,
fecho os olhos como quem se entrega a um carro
desgovernado, e avanço, bruto, tentando
respirar o tempo da tua pele, e não respiro,
de repente, ao procurar um telefone
na bolsa onde guardo as minhas vidas,
reparo que estão aí todas as minhas palavras,
o meu espaço está invadido pelas formigas
que me devoram os papéis, os cds, a arte
com que me tento equilibrar longe de ti,
vês como aprendi a roer os dedos, as unhas,
o lábio instante, a língua que procura o céu
da tua boca, para te dizer o que não entendes,
como folha rasgada do corpo que se queima,
13
este sou eu, natural, amador, perseguindo
as sombras das salas do museu dos velhos
rostos: quem pintou todas estas paisagens
com camponeses amarrados ao silêncio,
estas frondosas árvores que apenas existem
nos sonhos do homem que escreveu o livro,
esta sombra compreende a língua, a terrível
língua que despe e despede os teus seios
num recanto de jardim seco, é o remanescente
da tua voz este punhado de palavras que me
enchem a boca de desejo, este sou eu, estes
são os ramos do corpo, e tu és a mesma árvore
dos sonhos: amador de pintura naturalista,
vigia emoldurado, cabeça de velho a assomar
entre os arbustos da paisagem, víbora, frondosa
cabeça desenhada com a caneta da morte, não
és um sonho só: um homem diz eu sou esse
homem, ergo o rosto desse homem e estou cego,
14
estende as mãos, serpente, os dedos de arame
e sedução procuram os teus ombros, a língua
tornou-se insuportável, inchada e temível
como um afogado recolhido ao fim da tarde,
ocre o pôr-do-sol aparece por detrás do arvoredo
(querem fechar o museu, acendem as luzes),
e o amador, com as mãos nos bolsos, recorda
as sábias palavras do seu livro de instruções,
15
a tarde abre a porta com a sua aragem,
os ramos da estranha árvore inclinam-se
sobre o jardim destas paragens: ouve-se
passar um automóvel, cansado, o herói
limpa das armas com gestos lentos,
está descalço e há cansaço no seu rosto,
desgraçado, penso, as sombras perdem-se
e recuperam-se: sentado no átrio do hotel
perco o meu tempo a folhear uma revista
enquanto espero que me apeteça falar,
16
perdemos a vontade de sorrir, o cão
esconde-se debaixo da mesa, a toalha,
com as suas manchas de vinho e de molho,
as mãos amarrotando o guardanapo
de linho, os olhos postos na desgraça,
quantas vezes nos sentamos à mesa
com esta disposição, quantas vezes
esquecemos a amargura de um jantar
com os olhos postos na guerra suja
do iraque, a cores vivas e em directo,
Sunday, March 19, 2006
crónica Incêndio passional da juventude de um Nobel
Não, não me refiro ao Saramago, que é Nobel de Literatura, mas ao cientista Egas Moniz, Prémio Nobel da Medicina no longínquo ano de 1949. É que, o outro dia, apanhei na estante um seu livro de memórias, A Nossa Casa, de 1950, e aí ele refere-se a duas viagens suas a Santiago, na primeira das quais se lhe ateou o que ele designa de incêndio passional da juventude. E aproveito a oportunidade dos 50 anos da sua morte para evocar esta figura invulgar da Cultura Portuguesa em Santiago..
Conta o prof. Egas Moniz que, em 1897 (o grande fadista coimbrão Hilário morrera no ano anterior), em resposta a uma visita feita pelos tunos compostelanos, os seus camaradas de Coimbra foram a Santiago. «Na passagem em Tui, para a Galiza, escreve o então estudante de Medicina, começaram as manifestações a Santiago que, no céu, se devia sentir atemorizado com tanta evocação do seu nome, em apóstrofes infindáveis.» Depois: «Cantavam-se canções portuguesas e galegas, muitas vezes concordantes na sua toada folclórica que, naquela noite luarenta, trazia em chamas, arrebatamentos inesperados.» Egas Moniz discursava e os seus colegas cantavam. «E logo me prenderam os olhos negros de uma esbelta rapariga que no seu camarote ostentava no cabelo preto uma rosa vermelha que me serviu para qualquer frase apropriada. Todos se aperceberam da minha predilecção e ela própria não deixou de a sentir.» Entre recitais, o moço acabou por conhecer pessoalmente a tal jovem, com quem teve aceso carteio. «Foi nessa época que surgiu a guerra de Cuba, em que a heroicidade espanhola foi aniquilada pela força dos estados Unidos. A formosa compostelana prendeu-se por tal forma a essa luta, acendrou-se tanto no seu patriotismo exaltado de espanhola, que foi assunto fundamental das suas cartas. Não escondo que houve da minha parte, dado a entusiasmos, alguns madrigais; mas tudo isso era secundário. Pelo meu lado, também andava interessado nessa guerra, prevendo, como toda a gente, um desastre para a Espanha, mas tomando partido a seu lado.» E observa ainda: «Se a Espanha tivesse conduzido as negociações de forma a dar pacificamente a independência a Cuba, tudo se teria passado de forma bem diferente. Mas o ambiente político dessa época não era de molde a permitir tal solução.» E a troca de cartas acabou por extinguir-se a partir da derrota. «Sem azedumes, naturalmente, nos fomos esquecendo.» E assim acabaria a crónica dessa relação, «incêndio passional da juventude»,como lhe chamou o protagonista.
Anos mais tarde, Egas Moniz já de prestígio consolidado na Ciência, volta a Santiago, para dar umas lições sobre a sua especialidade, a angiografia cerebral, na faculdade de Medicina. O apresentador, prof. Casimiro Martinez, para se preparar também lera os jornais galegos da época, colheu lá a nota afectiva do seu colega. E meteu-a no discurso! Só passado algum tempo é que se apercebeu que a esposa do cientista estava presente e procurou salvar a gaffe! E observa Egas Moniz: «A linda compostelana casara, era mãe de alguns filhos e um deles era, ao tempo, quartanista de Medicina e assistia à sessão!»
Republicano, nada dado à igreja, Egas Moniz recorda que, na primeira visita, um colega galego, sabendo a sua maneira de pensar o convidou para uma festa no Instituto Católico Leão XIII, a que ele compareceu e onde discursou. No fim ouviu isto: «Magnífico, comportaste-te como um cardeal de Roma! Parabéns!»
E fecho com uma anedota, há dias contada pelo jornalista António Valdemar na sua coluna no Diário de Notícias. Pois sendo Egas Moniz um decidido opositor ao salazarismo, quando lhe foi atribuído o Nobel, na oficial Emissora Nacional a notícia foi dada como abertura de um dos blocos informativos. Logo o director, engº Silva Dias, montou processos disciplinares aos dois «culpados» - Jerónimo Bragança, chefe de Redacção, e Pedro Moutinho (não é meu parente), o locutor -, alegando que o cientista, «com Nobel ou sem Nobel, é um filho da puta da oposição»!
publicada no jornal A Nosa Terra, Vigo, 2005
Crónica Encontros com D. Ramón no Porto
A primeira vez que o vi ouvi-o discursar. Era eu moço e meteu-me muita impressão o verbo sonante de D. Ramón Otero Pedrayo. Sempre tive um certo receio de fazer má figura nas conferências, pois quanto mais ramalhudo é o verbo, mais sono me provoca. E eu sei que quando caio assim a dormir num auditório, tenho a tendência para usar o ombro do parceiro do lado como almofada e fazer soar as trombetas de Jericó em forma de roncos monumentais. Pois bem, confesso, não me encantou ouvi-lo. Perdia-me em tantas referências. Mas aprendi a conhecê-lo, lendo-lhe umas crónicas e uns contos, o seu Guia da Galiza, tal como o poderoso poema, pelo menos épico-gastronómico, sobre o vosso xamón, que é o nosso presunto (lapa de carne, flor do fumeiro, etc.).
Assim, há uns 32 anos, nos inícios de Maio de 1972, na Praça da Batalha, no Porto, vejo D. Ramón sair de um táxi e entrar num daqueles hotéis que ali estão. Eu conhecia o motorista e perguntei-lhe donde o trouxera. Disse-me que da igreja de Santo Ildefonso, justamente do outro lado da praça, uns cem metros difíceis de percorrer para as pernas cansadas do grande patriarca galego, que já andava muito alquebrado. 84 anos, morreria quatro anos mais tarde. Contou-me o taxista que o contratara por uma série de dias, sempre à mesma hora, para o atravessar a praça, a fim de poder assistir à missa da tarde, aguardava-o e regressava com ele ao hotel. «Deve ser uma pessoa muito crente! E muito sábio! Diz-me cada coisa! E entende-se muito bem!» dizia-me o taxista.
Entendi que era a altura de me encontrar efectivamente com ele. E recebeu-me. D. Ramón descansava no Porto de uma ida a Lisboa falar de Santiago de Compostela. Desse encontro, guardo registo das suas palavras: «Dediquei-me quase indistintamente a todos os géneros literários numa altura em que a Galiza o necessitava. A intervenção era importante em qualquer domínio. Não hesitei. Lamento apenas não ter tido espaço suficiente no meu tempo para me dedicar ao romance, género para que me sentia mais inclinado e dotado. Sempre me agradou observar tipos estranhos.
«Claro que na época em que começámos a trabalhar, por volta de 1913, quando se iniciou a ressurreição do galeguismo oitocentista. Nesse tempo tudo fazia falta, como lhe disse. Talvez Os camiños da vida, de 1928, tenha sido a minha obra de ficção mais acabada.» E falava desse livro: «Descrevo aí o caminho da sociedade galega no século passado. Exactamente no ponto em que se começaram a fundir as antigas instituições patriarcais, que não eram mais do que formas de individualismo moderno! Punha face a face a fidalguia camponesa na sua evolução provocada pelas ideias liberais, precisamente quando esses aristocratas iam á cidade e se comportavam já como cidadãos normais sem assumirem atitudes empoadas…»
Falou-me longamente de Santiago e do seu ambiente mitomaníaco (a expressão é dele), dos seus bêbedos filósofos encharcados em vinhos do Ribeiro! Assim acaba por falar-me da sua perspectiva da língua galega: «Espero que o galego assuma uma vez mais a importância da Cultura de que é expressão. No entanto, creio que é uma vantagem para um povo ter duas línguas, tanto mais que uma nãoexclui a outra. Não se pode deixar morrer um idioma por muito humilde que seja. Doutro modo seria como deixar morrer ou matar uma fonte. A grandeza do povo galego reside em muito no ter sabido guardar a língua para tempos propícios…» E falamos em Valle-Inclán. D. Ramón diz-me que ele «não entendeu o camponês como ele merecia. E nisso errou. Valle-Inclán considerava sempre o camponês um bufão, um bandido, uma figura pitoresca e nada mais do que isso. E esta atitude é totalmente desrespeitosa da parte de um galego que nem sequer sabe compensar com a sua admiração um povo cioso do seu património cultural.»
Foi neste encontro de Maio de 1972 que D. Ramón Otero Pedrayo me disse como sonhava o futuro da Galiza: «Gostaria que fosse uma democracia camponesa. Sem grandes cidades nem grandes indústrias. Indústrias, só caseiras.» Mas acabou por reconsiderar o país encantado e pouco prático que imaginava e acrescentou: «Gostaria que o galego não partisse, não emigrasse e ficasse na sua terra. Todavia, a Galiza devia estar tecnicamente melhor equipada para o poder reter com trabalho. Entendo que se deveria fomentar a vida das paróquias. Não por uma questão absolutamente religiosa. Creio que a formação da Galiza em paróquias é mais autêntica que em municípios. As paróquias creio serem derivadas de antigos clãs a que a igreja depois apôs uma cruz e um cemitério! Isto está tão arreigado ao povo galego que nas próprias colónias de emigrantes na América do Sul se constituíam em grupos de dimensão paroquial.»
Mostrando-se avesso á divisão da Galiza nas quatro províncias, justificou-o considerando ser um despropósito este retalhar de regiões naturais. Mas D. Ramón estava ainda emocionado com o que recentemente lhe acontecera e ele achava ser a sua mais grata recordação: «Quando me despedi dos meus alunos da universidade de Santiago de Compostela verifiquei que era amado pela juventude. A nós, os velhos, o que mais nos conserva é a simpatia dos mais novos. Sobretudo quando nos metemos com as nossas lembranças e ouvimos a morte aproximar-se de mansinho, girar em torno de nós a murmurar que faz apenas aquilo que lhe mandam… Bem, agora nem passo pelos cemitérios!»
Muitos anos depois estive em Trasalba, conheci o seu paço e a sua biblioteca, algumas lembranças suas que ali estão. Percorrendo aquelas lombadas, reencontrei-me melhor com a obra de D. Ramón Otero Pedrayo. É só saber olhar…
Publicado no jornal A Nosa Terra, Vigo, 2005.
Autobiografia Poderei não ter sido assim
Eu não fazia parte do elenco da peça, estava sentado na coxia da terceira fila, talvez perdido entre dois blues, mas ergui-me da poltrona e galguei os degraus para o proscénio. Chabela Vargas cantava nas minhas veias? O Manuel Freire era a voz da razão, soava Paul Robson no Old Man River. A sala ainda estava iluminada e situei-me logo ali. Mostrei à vontade ao erguer uma perna e pousar a alpargata sobre a caixa do ponto, impedindo que ele iniciasse a leitura murmurada da comédia, a comédia que se encontrava em cartaz. E declarei aos que procuravam sentar-se nas poltronas correspondentes aos seus bilhetes, o meu nome e acrescentei que chegara, havia muito, de uma ilha perdida no Atlântico, e que eu nascera quando os canhões começavam a calar-se pela segunda vez em todo o mundo. Falei que estava agora a lançar raízes na ilha, a Ilha do Ogre, mas arrepiei caminho. Um gracioso, num dos camarotes, perguntou em falsete se eu queria dizer que nascera na Madeira em meados de 1945. Aplaudiram-no, mas a mim apetecia-me, como sempre, dizer as coisas de modo mais sinuoso, acrescentando ser filho de um homem do Douro, extraordinário efabulador, desinteressado das vinhas e dos olivais da família, dele e de uma inglesa, que levara como dote, uns brincos de sua mãe e memórias de uma riqueza palaciana, carregada de preconceitos, inclusive de classe.
Assim, entre a realidade quotidiana e as memórias ficcionadas, ou apenas inacreditáveis, montes de livros, férias no Douro, onde os personagens eram escritos por mim sobre as histórias de meu pai, e a figura mítica de um avô, que andava pelos campos em misteriosos trabalhos que eu não entendia muito bem. Ah, e as pessoas, já sentadas nas suas poltronas, impacientavam-se porque, segundo diziam, eu estava a impedir o início da representação. Teria sido muito simples se se erguesse o pano, surgisse o primeiro cenário e os actores começassem a função, naqueles jogos de deixas garantidos pelo homenzinho da caixa sobre a qual eu tinha pousado a alpargata.
Na verdade, eu nem precisava de cenários nem de mais actores ou de que quem quer me sussurrasse os passos da minha vida, que eu me dispusera a contar naqueles momentos. Havia um foco que percorria a sala e, de quando em quando, mas cada vez mais insistentemente, se fixava em mim. Eu calculava que uma certa percentagem do sucesso que ali pudesse ter assentaria no facto dos gordos serem considerados pessoas bem dispostas. A plateia, mulheres e homens de rostos atónitos, era constituída por gente que me parecia demasiado magra. Nas histórias de meu pai havia sempre um frade imponente e eu imaginava-o sentado a uma grande mesa, e eles, bocas abertas, olhos bugalhudos, vendo as suas poderosas mãos agitando talhadas de presunto, coxas de capões assados, côdeas de broa, pernis de porco negro, grandes malgas de vinho tinto, um bródio à antiga! E aquele frade era eu, possivelmente o meu fantasma. Essa era a maneira que eu tinha de lhes mostrar bem saber como entrar na dimensão por onde andaria, com as mesmas glórias, vícios, vaidades e saberes de sempre. E se um lugar há dentro da minha cabeça, que, cuido como poiso da memória de toda a família, esse é o Quarto dos Santos da casa dos meus avós. Havia aí um oratório, com a Senhora do Campo, milhares de velas de cera, cujo arder empestava até ao corredor, uns diplomas que davam alguns dos avós como terceiros de ordens e de confrarias, centenas de figuras de santos, anjos e arcanjos, suponho quase todos apócrifos, uma espécie de santíssimo exército a vigiar a fé da minha avó e de todas as velhas murmuradeiras nas rezas e jaculatórias ao quotidiano toque das Trindades.
Eu tinha um fascínio por aquilo tudo e, de noite, vinha do meu quarto, espreitar aquela população prodigiosa, que parecia adquirir vida com o tremular das lamparinas eternamente acesas. Havia ainda o gavetão de uma cómoda onde eram guardadas umas esporas douradas, cuja origem ninguém condescendia em contar-me. Numa caixa de velas, era guardado um enorme revólver de espigão, hoje aqui a defender alguma papelada dos ventos do Porto que me devassam o lugar de trabalho.
Vivi em Espinho, onde se passeavam vários fantasmas, o de Amadeo e o de Laranjeira, de um pintor espanhol que tinha uma orelha de cera e uma escritora de romances cor-de-rosa. Como professor, no Colégio de S. Luís, tive o novelista José Marmelo e Silva, uma lição de intelectual que encolhia os ombros à glória efémera. Em segredo, falava-se muito do assassínio de um médico comunista, Ferreira Soares. E ali havia uma feira enorme e cheia de sugestões, que era a minha perdição às segundas, quando escutava romances de cego, a conversa fiada dos vendedores de banha de cobra com a jibóia ao pescoço, transportada numa mala de cartão, cobra que comia coelhos vivos à nossa vista. Um corcunda vestindo de branco, com um tabuleiro ao pescoço, rondava o colégio, expressão sardónica, a guinchar: «Chupa-chupa, caramelo, estica!» Um perfeito do colégio pedia-nos calendários para os trocar por copos de vinho numa taberna ao fundo da rua. E as incursões ao estranho universo do mosteiro de Grijó, em cuja quinta, parte do cenário de um romance de Júlio Dinis, dizia-se, passei a odiar leite quente quando o parvo do moço da vacaria ordenhou umas sujas tetas lançando-me jactos de leite branco, espesso, gorduroso, directamente para a boca escancarada.
De Espinho, de Almendra, mudei-me para o Porto, o que eu aprendia parecia-me que era o arrastar de uma espada do tamanho da que é atribuída a Afonso Henriques e está no Museu de Soares dos Reis. Ganhei mais o gosto da História e de alguns caminhos da Antropologia. Entrei para o Jornal de Noticias, em cujo suplemento literário já colaborava. Fiz a via-sacra dos hospitais, da morgue, dos acidentes, das lixeiras. A primeira grande entrevista foi com o Eugénio de Andrade. Eu já sabia que não levava a melhor com a puta da Censura, mas procurava iludi-la. Comecei a ir a Lisboa, onde conheci alguém que foi decisivo na minha vida de escritor, o Urbano Tavares Rodrigues. Colaborava no República. Em 1966, mando imprimir um livro de prosa poética, O Corredor, capa do Zé Rodrigues. A exemplo não sei de que poeta francês, queimei a edição toda! Nem um exemplar tenho, só quatro páginas de provas. Dois anos depois saiu Natureza Morta Iluminada, uma narrativa, 32 páginas, ilustrada pelo pintor Fernando de Oliveira, meu compadre. Irritei-me muito com um idiota a quem ofereci o livro e, dez dias depois, me disse que andava a lê-lo! Depois, de 1975 a 2003, estive no Diário de Notícias.
Fraternalmente, conto com o António Rebordão Navarro, o Marco, o Méndez Ferrín, o Francisco Duarte Mangas, o Fernando Lanhas e alguns outros mais. Em relevo tenho dívidas antigas com a Ana Hatherly, mesmo com o Michel Butor, e modernas com o José da Cruz Santos. Poderia contar mais coisas, mesmo sobre amigos deportados em campos de concentração nazis, mas para quê? E aqueles que ficaram pelo caminho?
Bem, na verdade, há um estranho silêncio no teatro, afinal um dos muitos teatros que arderam sem eu ter dado por ela. Andei pelo mundo, entre bruxas da Chã de Ferreira e meigas galegas, escutei histórias mágicas por toda a parte, até contei caveiras nos tzompantlis e bailei o danzón em Veracruz, escrevi muitos livros, e apetece-me continuar a escrevê-los. Vivi intensamente o 25 de Abril, conheci a Liberdade. E fui vidente em Seide, vi Camilo à janela de sua casa quando lá fui receber o Grande Prémio do Conto por aquele livro Cenas da Vida de um Minotauro. Acenou-me, daí eu ter começado a falar logo com ele, o que levou os presentes – o Zé Manel Mendes, o Navarro, a Cristina Robalo Cordeiro e Aníbal Pinto de Castro – julgaram ser boutade e não era senão uma aparição pagã privada. Por isso, na pedra de Seide apareceu o meu nome.
Andei pelo associativismo cultural, mas desencantei-me. Porém, estou encantado noutro nível, pois aos 60 anos, ainda agora cumpridos, continuo apaixonado e não só pela vida. E cá ando, atraído por pelos muitos rostos de um universo plural. A História parece que, cada vez me absorve mais, em termos de testemunho e de base para ficção, da Guerra Civil de Espanha aos campos de concentração. Depois, por um bando de sobrinhos, escrevo para a miudagem. E quando julgava que não tinha mais nada a fazer nessa área, a minha afilhada Francisca contratou-me para a ensinar a ensine a ler e, é claro, a missão está atribuída e não posso esmorecer ante quatro anos e meio de muito querer aprender.
Ah, mas afinal isto não é teatro coisa nenhuma, estou é encafuado no Quarto dos Santos. As lamparinas é que provocam estas visões e a herança das fábulas potencia a memória. E quanto não disse, sem o esconder! De quando em longe, sento-me à mesa com um bom amigo de infância, o Jorge Carvalho, da Quinta do Mocho. Ou com o meu irmão. Mas, nestas ladeiras que calcorreio por receita médica, penso muito nos que vão ficando pelo caminho – o Adriano, a Fernanda e o Fernando, a Maria Virgínia, o António Sampaio, o Egito, o Veiga Leitão, o Eugénio, o Companheiro Vasco, o Manuel Maria, o Uxio, tantos outros. Mas também penso na bela maneira de encarar a vida de uns amigos especiais – Francisco Mangas, que me ensinou a pescar, o Tony, um primo do fundo dos séculos, e o João Cid, pintor, poeta, neto do Manuel ‘intimo do António Nobre.
Ah, mas já não está aí ninguém? Pois, nunca aí esteve ninguém. Também me vou embora, só me resta ser o escritor e o bonhomme que sempre fui.
Publicado no Jornal de Letras, Lisboa, 2005.
A Aninhas é uma menina muito desembaraçada, embora, às vezes, tenha os seus momentos de preocupação. Ora, naqueles dias antes do Natal, quando se levantava pela manhã, corria ao calendário da cozinha a ver se já era dia 24.
O primeiro dia de férias que viu foi o dia 20, depois, na manhã seguinte, era o 21.
Na outra manhã depois apanhou um susto porque era outra vez 21, mas a mãe é que se esquecera de arrancar a folhinha. Para aflição e depois alegria da Aninhas, que não sabia o que estava a acontecer com o tempo, a avó Leocádia, quando foi tomar o comprimido do meio-dia, olhou para o calendário, pensou um bocadinho e exclamou:
- Ai, esta minha filha esqueceu-se de tirar a folha de ontem! – E piscando o olho para a neta disse-lhe – Hoje são 22.
E arrancou a folha de 21.
A Aninhas ainda pensou que a avó lhe faria o favor de tirar mais duas folhas, mas viu que aquele dia era mesmo o 22 e não podia ser outro!
O que a Aninhas queria era chegar depressa a 24, pois à meia-noite, nem que estivesse a cair de sono, teria os presentes todos que encomendara. Assim, passava aqueles dias a folhear livros e a ver DVDs quase sem lhes prestar atenção. Na verdade, se depois dela ver um filme de desenhos animados lhe perguntassem pela história, não sabia, não lhe prestara atenção nenhuma. A Abelha Maia, por exemplo, vira esse filme quatro ou cinco vezes, mas não se lembrava de nada.
O Miguel, que é o irmão do meio, queria ver pela oitava vez o DVD Sozinho em casa, com o qual se divertia muito por causa das armadilhas que o rapaz pregava aos ladrões que lhe assaltaram a casa. Queria ver, mas não via, pois a Aninhas, andava sempre com os seus desenhos animados para trás e para a frente, a ver se o tempo passava. E aquilo de fazer zangar o Miguel era também para não dar pelo tempo a passar. Queria era o dia 24 de Dezembro.
Assim, o Miguel, que tem manias de diplomata, começou por pedir-lhe com toda a delicadeza que ela o deixasse mudar de filme, mas a mana mais nova só fazia que não com a cabeça. Depois ele disse que o Sozinho em casa era uma maravilha, que poderiam vê-lo os dois, que o menino que lá aparecia fazia umas armadilhas muito divertidas, que ela iria gostar, mas a Aninhas nem respondia, agora a fazer as vozes dos bonecos.
E o Miguel, sacudiu a sua delicadeza toda, decidindo, por fim, tentar assustá-la:
- Olha que, um dia, vêm cá as bruxas e levam-te! Estás a ser má comigo, Aninhas! Olha que as bruxas vão-te…
Mas, olhinhos a brilhar, sem os tirar das aventuras da Abelha Maia, a Aninhas, sorrindo, disse que não só não tinha medo de bruxas como até sabia uma coisa que não dizia a ninguém.
Muito intrigado, o Miguel quis que ela lhe dissesse:
- O que é que tu sabes e não dizes nada a ninguém?
- Ora essa! Se eu te dissesse aquilo que sei já não era o segredo que é!
- Mas dizes-me só a mim, que sou teu mano, e eu não digo nada a ninguém!
- Não digo.
- Porquê?
- Porque eu não quero é que tu saibas o que eu sei. Na verdade, posso dizer isto a toda a gente desde que ninguém te diga o que é!
O Miguel ficou a olhar para a Aninhas com uma cara de quem não estava a perceber mesmo nada. Passado um momento, calado, saiu do quarto dela e foi à sala, onde a Alexandra, que é a irmã mais velha, estava a ler um livro do Harry Potter.
- Posso interromper a tua leitura por um momento?
A Alexandra, que estava na página 214, a meio de um feitiço, meteu o dedo indicador direito no sítio em que estava a ler e, tirando os óculos, olhou o irmão com ar interrogativo. Claro, se ele já interrompera a sua leitura com aquela pergunta, que falasse, pois a coisa que ela mais queria no mundo era continuar com a leitura daquele livro.
- A Aninhas tem um segredo!
- Ai tem? E o que é?
- Não me disse.
- Então…
. - Então queria pedir-te que fosses lá ver que segredo é.
- Para depois to dizer, adivinhei?
- Claro.
- Quando acabar de ler este livro trato disso.
- Falta-te muito?
- Vou na página 214.
- E quantas te faltam?
- Faz as contas, maninho. O Harry Potter e a Ordem da Fénix tem 750 páginas, já li praticamente 214
O Miguel abriu a boca admirado com o tamanho do livro que a irmã Alexandra andava a ler. Ainda quis contar pelos dedos, mas viu que não tinha tantos dedos assim. Nem que fosse uma centopeia que em cada uma das cem patinhas tivesse cinco dedinhos! Mesmo assim, pegou numa esferográfica e fez a conta, chegando à conclusão:
- 536 páginas! Ainda te faltam 536 páginas!
- Olaré!
- E quanto tempo demoras a lê-las? Até antes do jantar?
- São quatro e meia do dia 22 de Dezembro de 2003 – disse a Alexandra, a gozar as palavras que ia dizendo lentamente. – Olha, Miguelinho, passa por cá lá para o dia 29 ou 30 deste mês…
- Então não podes dar-me uma ajudinha, não?
A Alexandra abriu de novo o livro. Antes de mergulhar de novo na leitura, ainda deixou dito:
- Se tivesse sido há três meses, tinhas mais sorte…
- Porquê?
- Andava a ler o Harry Potter e a Pedra Filosofal, que só tinha 256 páginas!
O Miguel zangou-se mesmo:
- Pois, o que tu não queres é que eu veja o Sozinho em casa…
Com a atenção quase toda metida nas páginas do Harry Potter, a irmã mais velha acabou-lhe a frase:
- … pela vigésima vez!
Do quarto da Aninhas chegava a voz dela a imitar a Abelha Maia:
- Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz!
O Miguel, com o DVD do Sozinho em casa debaixo do braço, voltou a apresentar-se ao pé da irmã mais nova:
- Queres vir para o terraço dar uns chutos na bola?
A Aninhas deixou de prestar atenção ao filme e perguntou:
- Vamos jogar futebol para o terraço?
- Vamos. Mas deixas-me ver o Sozinho em casa…
Bem via como aquilo ajudaria a fazer o dia andar mais depressa. Concordou:
- Está bem, mas vês o teu DVD depois do nosso jogo.
Com um gesto, que parecia mágico, ela retirou a Abelha Maia do leitor de DVDs e correu para a cozinha, a abrir a porta para o terraço, enquanto o Miguel ia ao quarto buscar a bola. A meio do caminho, a Aninhas parou e disse ao Miguel:
- Depois conto-te o segredo…
O irmão – ela bem o vira! – em vez de ir buscar a bola fora meter o Sozinho em casa no leitor. Ao ouvir aquilo, cheio de curiosidade, deixou-o logo e foi atrás da Aninhas. Mas ela dera meia volta e já estava sentada à mesa na cozinha a comer pão com fiambre, diante de um grande copo de leite. A mãe ficou surpreendida com aquele momento de paz e preparou mais pão e mais fiambre para o Miguel, assim como o tal copo grande de leite com umas colheres de chocolate.
- Contas?
- Conto.
- Ora conta.
- E jogas mesmo futebol comigo?
- Jogo.
- E deixas-me ganhar?
- Deixo.
- E eu sou do Benfica e tu és do Porto?
- Sim.
- E ganha o Benfica?
- Ganha.
- E o Porto perde com o Benfica?
O Miguel engoliu em seco e comentou:
- Estás a abusar, não estás? – Ele entendia que sim.
E a Aninhas, enquanto lanchava, muito senhora do seu nariz, contava:
- Sabes? É que não há bruxas más coisa nenhuma. E também não há mostrengos nem dragões!
O Miguel achava que, pelo menos, havia um dragão no mundo, que era o do FC do Porto, mas não disse nada.
- Os grandes é que gostam de nos meter medo! Eu sei muito bem que uma pessoa não pode transformar outra num sapo nem numa lagartixa! Era o que mais faltava, se pudesse! Nem há príncipes encantados, nem nada dessas coisas! Aquelas histórias das rainhas más...
- Pois era… Mas, e o segredo que tu me disseste?
- Ai, queres maior segredo do que este?
A mana mais nova estava com ar de caso. Como é que ela sabia aquilo tudo?
- O outro dia, estava a ajudar a Luciana - que era empregada lá de casa -, a limpar umas caixinhas de metal, daquelas da colecção do pai, e de dentro de uma que eu estava a esfregar saiu uma nuvem de fumo que se transformou num homem muito grande, de barbas e com um barretinho vermelho na cabeça.
- Estás a gozar comigo!
- Era um Génio Mágico…
- Para aí do Benfica, pela cor do barretinho…
- Isso já não sei, Miguel. Ele disse-me que fazia tudo o que eu quisesse e pedi-lhe que me respondesse a umas perguntas. Assim, fiquei a saber que não há bruxas nem nada dessas coisas, nem que houv feiticeiras, essas coisas! É tudo uma mentira pegada para as meninas e os meninos não se portarem mal.
- E que te disse mais o Génio Mágico?
- Que o meu irmão vai ser um grande jogador do…
- …Porto!
- Não, do Benfica!
O Miguel, desconfiado:
- Tens a certeza?
- Tenho. Mas para ti é melhor porque o Benfica é que tem futuro!
- Mas o Porto já é um grande clube!
- Ora! Ou acreditas no Génio Mágico ou não! Já ficas a saber que não há bruxas, que o Benfica vai ser o campeão, e que eu vou saber tudo!
- E como é que vais saber tudo?
- Ele deu-me uma bola de cristal.
O Miguel olhou em volta.
- Não a vejo aqui na cozinha e no teu quarto também não está.
- Pois não, porque é pequenina.
- Como uma noz?
- Como uma avelã.
- Emprestas-ma?
- Para quê?
- Para eu ser o melhor a Português, a Inglês, a Matemática... na bola...
- Não posso. Só dá resultado comigo, Miguel.
- E depois de ter falado contigo, o que é que o Génio Mágico fez?
- Foi para dentro da caixinha.
- O Pai tem cinquenta e sete caixinhas de metal, em qual delas está metido? Como é que sabes qual é?
- Vou passando o pano por todas, com aquele líquido próprio. Não é bem só passar o pano, é esfregar mesmo com força. Na próxima vez que as limpar, decerto o génio volta a sair para falar com quem esfregar a caixinha dele...
No dia seguinte, depois do almoço, quando o pai perguntou à Aninhas se ela fizera o que ele lhe pedira, ela disse que, de certo modo, sim. O Miguel é que estava sem perceber aquela conversa. A Alexandra sorria, como se estivesse a lembrar-se da magia mais mágica do Harry Potter.
O pai abriu o armário da entrada e retirou para um tabuleiro as suas caixinhas de colecção. Estavam lindas, brilhantes, limpas. E logo disse:
- A Aninhas merece bem a caixa de chocolates pelo trabalho que fez! Uma limpeza muito bem feita!
E a Aninhas recebeu a caixa, foi sentar-se num dos sofás e logo dividiu os chocolates com o Miguel, que estava furioso, mas sem dizer palavra.
- Olha, Miguelinho, agora é que te vou dizer o melhor do segredo.
- E qual é? – perguntou o Miguel, que já não estava a gostar da brincadeira.
- Que mereces quase meia caixa de chocolates por teres limpo tão bem as caixinhas da colecção do pai.
- Mas tu ficaste com a maior parte...
- Foi pela lição! Andaste à procura do Génio Mágico…
- Mas ele não apareceu!!!
- Pois não, nem a mim!
- Então…
- Então, sem quereres, fizeste-me um grande favor!
A avó Leocádia, que percebeu tudo o que se passara, soltou uma gargalhada e comentou:
- Ai esta minha neta Aninhas é uma menina muito arranjadinha!
De facto, arranjara com que se entreter aqueles dias! O tempo passara depressa, depressinha. Olhou para o calendário e disse à mãe que aquele dia se estava a acabar, pelo que poderia, desde já, tirar a folha do dia 23. Foi a avó Leocádia que estendeu a mão para o calendário. E naquele momento ouviu-se um barulhinho como se um balão se estivesse a esvaziar.
E eis que no meio da cozinha apareceu mesmo o Génio Mágico que, voltando-se para a Aninhas lhe perguntou:
- O que é que mais queres, menina?
- A meia-noite do dia 24 de Dezembro!
O Génio Mágico deu estalo com os dedos e a mãe da Aninhas levantou-se da cadeira, foi ao calendário e, enquanto arrancava, a folha do dia 24, dizia:
- Podem ir buscar as prendas à lareira, meninos.
Foram todos a correr para a sala. Ao pé da lareira, num monte que nunca mais acabava estavam caixas e mais caixas com lindos papéis e fitas. Prendas para a Aninhas, para os manos, para os pais e para a avó Leocádia. Esta foi a última a aproximar-se porque fora abrir a janela para o Génio Mágico poder sair dali para fora, em direcção ao seu país tão distante. Sentado no seu tapete voador, ele repetia as palavras da avó:
- Ai que menina tão arranjadinha...